‘Só temos a fé agora’: terreiro de candomblé é incendiado na Baixada Fluminense

Terreiro em Nova Iguaçu tinha cerca de um ano e foi completamente tomado por incêndio | Foto: Divulgação


De janeiro a setembro de 2024, o estado do Rio registrou 72 casos de preconceito religioso. Estudo feito junto a terreiros na Baixada e na zona oeste da capital fluminense em 2023 mostrou que 75% deles já foram alvos de violência


NOVA IGUAÇU - Neila de Oya diz que agora só restou a fé. Iniciada no candomblé há 24 anos, ela havia inaugurado no ano passado o terreiro Ilê Àṣẹ Oya Osun Nidê, na periferia de Nova Iguaçu (RJ), Baixada Fluminense. O espaço em que atuava como mãe de santo acabou incendiado no último domingo (9/3), no que a Polícia Civil suspeita ser mais um caso de intolerância religiosa — a região tem um longo histórico de ataques.

O terreiro estava vazio na ocasião em que foi completamente tomado pelo fogo. Neila foi avisada do incidente por vizinhos, por telefone. Ao chegar à casa de santo, os moradores do entorno já haviam contido as chamas. Ainda assim, estava tudo sob cinzas, dos itens sagrados do espaço ao teto.

“A gente perdeu tudo. Perdeu geladeira, freezer, fogão, até o teto, tudo”, diz a líder religiosa à Ponte. Os bombeiros foram ao local e, em uma averiguação preliminar, não identificaram sinal de curto-circuito na fiação. Também não havia vazamento de gás. Foram encontrados três focos de incêndio que, aparentemente, acusavam ação humana, ou seja, um ato deliberadamente criminoso.

“A gente foi atacado, não se sabe por quem. Tenho fé na polícia que ela vai descobrir quem foi, porque não temos mais nada agora, só a fé”, diz a ìyálorisá da casa de santo, pertencente à nação Ketu, o mais popular segmento do candomblé no Brasil. Ao longo dos anos dedicada à religião, Neila diz que já havia visto ataques, mas nunca na condição de vítima: “Eu via algum caso, ajudava e até questionava: ‘Poxa, mas a pessoa tem que ir lá, gritar’. Mas, quando é com a gente, não dá. A gente fica acuado”.
Histórico de ataques

O episódio é investigado pela Delegacia de Combate aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), sediada na cidade do Rio de Janeiro e especializada nesse tipo de ataque. Apenas de janeiro a setembro do ano passado, conforme dados mais recentes do Instituto de Segurança Pública (ISP), vinculado ao governo estadual, houve 72 casos de preconceito religioso em municípios do Rio. Entre eles, 39 foram registrados como ultraje a culto e outros 33, como intolerância religiosa.

Nesse mesmo período, o estado também teve 2.021 vítimas de injúria por preconceito e 890 de preconceito de raça, cor, religião, etnia e procedência nacional. Tratam-se, portanto, de episódios que podem estar relacionados a intolerância religiosa, apesar da classificação diversa.

Em 2023, um estudo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) feito junto a terreiros da zona oeste do Rio e da Baixada Fluminense mostrou que 75% deles já haviam sido alvo de violência. A pesquisa indicava também que os números de ataques a praticantes de religiões de matriz africana ainda podem estar subnotificados. 

 

Justiça para dar um basta

Para o babalaô Ivanir dos Santos, que também é professor de história comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), é preciso uma resposta contundente das autoridades para cessar os ataques.

“Apesar das frequentes recomendações e declarações em prol de um maior entendimento entre os povos e do respeito às diferentes crenças, a intolerância religiosa continua sendo um dos maiores desafios para a construção de uma sociedade mais igualitária, é preciso agir com rigor”, disse ele, conforme divulgou a família de axé do Ilê Àṣẹ Oya Osun Nidê em um comunicado sobre o incêndio.

Neila diz também esperar por justiça em seu caso como um basta a qualquer ataque: “Eu vou reconstruir a minha casa, Xangô vai me ajudar. Mas o próposito é encontrar quem fez isso e punir, para que não aconteça mais, para que o responsável não faça coisa pior, para que entendam que isso é crime. Ninguém tem de passar por isso. Todo mundo tem o direito de ter sua fé, de buscar Deus da sua forma.”
Leia a íntegra do que diz a Polícia Civil do Rio

“A Delegacia de Combate aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) investiga o caso. Representantes do terreiro prestaram depoimento na especializada. Diligências estão em andamento para identificar e ouvir a suposta autora e esclarecer os fatos.”

Fonte: Ponte.Org/CNN Brasil

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